segunda-feira, 26 de junho de 2023

carnaval







(...) o que mais me comove em meio a uma multidão é ser encontrado pelo seu olhar. Entrar na sua mira. E ser atraído pela gravidade irresistível dos seus olhos até ser enlaçado nos seus braços no meio da turba. Um gesto de carinho e calmaria diante de tanta alegria e confusão para depois ser solto de volta pro mar. O que mais admiro em você é a sua liberdade. As vezes é tanto que espanta. E esse espanto é que deixa a gente vivo. Aquece, confunde, remexe. Viver é isso. Diadorim dizia que viver é muito perigoso. E não se expor a esse risco significa não viver. Ele dizia também que “quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade”. Na primeira vez que li, discordei. Mas agora entendo. Nosso amor é senhor e servo. Uma servidão que obedece o desejo e não o outro. O outro jamais pode ser, para nós, um freio, um obstáculo. A nossa parceria é um senhor sem ser dono, como um apoio fraterno, compreensivo que sempre age com compaixão. Vamos ser livres de tal modo como aquele muro alerta: a liberdade é o espaço que a felicidade precisa. Vamos arrancar as correntes e suportar essa dor no peito. Encarar de frente um amor autêntico, verdadeiro e pegar a felicidade pelo braço e sair correndo como dois apaixonados. Quem de longe, ao observar desavisadamente, não entenderá porque tamanha pressa. Mas é porque eles não entendem que a nossa pressa é a calmaria de estar sempre indo ao encontro do outro. Porque seu peito é meu cais, meu aeroporto, minha rodoviária: é o espaço de toda a saudade. 



terça-feira, 31 de janeiro de 2023

penumbra

aqui se esconde aquilo que não pode ser capturado 
.
nada é inapropriado se falado ao pé do ouvido 

como um sussurro que precede o gemido 

uma prece, um pedido, um suplício

no leito do quarto

ao lado da mulher desejada 

onde dizer o proibido é permitido 

e nenhuma censura convém ao arbítrio 



não há timidez que se imponha à nudez

da liberdade de se estar nu

com a pele a atravessar o corpo 

numa sutileza e certeza daqueles que conspiram
 
junto a um cúmplice que sabe-se infiel 

onde a traição é a própria redenção

e a salvação não exige o perdão
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quinta-feira, 15 de setembro de 2022

besouro

 





Entre os pés que poderiam lhe causar a morte, 

                                                    vejo um besouro de barriga para cima. 

Patas balançando em sinal de desespero, 

                                                    quase não mexe o seu exoesqueleto

segues implorando com pouca sorte

de pernas para o ar

com desalento e angústia: agoniza

a espreita de qualquer ameaça que pode o esmagar.

incapaz de alçar voo

torna-se inútil o nosso besouro

                               - que quando vence a gravidade

                                 plaina zonzo, barulhento - mais pesado que o vento pode suportar

aos olhos em desalento, pensa-se, na altura, um alvo fácil de acertar

mas indefeso no chão

                                 -  sem poder voar - 

ninguém pisa e o mata

                                por compaixão ou complacência

por não ser uma barata. 


quarta-feira, 9 de março de 2022

uma valsa brilhante

Plié.

o começo. as pernas flexionadas como se fosse dar um impulso, mas é apenas o mínimo para poder existir. dizem que se conhece uma bailarina ao ver seu plié: eu não sabia

Tendu

lentamente move-se. austera e solene; pensa-se previsível, mas não é. há uma elegância nos gestos. não sabemos aonde ir. o sol aponta a direção. as ondas traçam o caminho: dançamos.


Frappé. 

assertivo e (sempre) elegante: atingido

Rond de jambe. 

a perna entrelaçada, girando. indo de trás para frente. percorrendo cada centímetro do corpo. a pele como gravidade, atraindo, prendendo, envolvendo. o cheiro. o gosto. o tato. contato.

Grand Jeté

seu sorriso como salto - lançado com energia. não sentimos os pés no chão. e esse tempo em suspenso - para aqueles que observam de fora - parece tão pouco; para nós: corre tão lentamente. 


Adagio. 

suspensos no ar. suavemente, suspensos no ar. 


Fondu. 

o tempo se recolhe e age. em um só passo. escasso

En dehors

os calcanhares virados para fora. um sinal de despedida.


*



na memória existem todos os movimentos do corpo. para fazer três piruetas tem que se posicionar, olhar para um ponto fixo e dar o impulso - isso que ensinam os professores.

fitar-te,
antes do impulso
sem saber ao certo a possibilidade do salto

todos os seus gestos conduzem a uma dança. Sem a rigidez exigida pelos clássicos, sem a preocupação com os joelhos ou a ponta do pé. Carrega consigo apenas o necessário: a música em seu rosto contra o vento, os passos sutis enquanto caminha na areia. beijo seu ombro como um convite: 'vem dançar comigo... vem?'



sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

o fim do mundo será belo

O fim do mundo será belo.
como quem não quer morrer
talvez o desespero
Impeça a sua devida contemplação

O fim do mundo será belo
e não perceberemos
como num final de filme
quando desprezamos
os créditos finais

O fim do mundo será belo
como a fagulha de um cigarro
em meio a noite
e a fumaça que dissipa da boca.

Amaremos o fim do mundo
Pela sua beleza
Pelo seu inerente desespero.
Pela sua violenta compaixão
Pelo fim da fome
Pelo fim da miséria 

O fim do mundo será belo
paraqueles que viver é sinônimo de sofrer
e - talvez - essa seja a única alternativa
para construção de um caminho que conduza
o povo ao encontro da alegria de viver.

É como diz o ditado:
"que dia agitado
seria hoje
se não fosse o amanhã."

sábado, 5 de dezembro de 2020

Firme, hermano





aqui, eles a chamam de calle e dizem que o dono dela é o pueblo
inundam-na com enorme facilidade
num mar de gente com calça caqui
caminhando em ondas e ondas
faixas ao alto,
bandeiras e 
esperança

em meio a multidão, um homem segurava um quadro de Bolívar.
não abaixou-o  sequer por um minuto. Quando foi embora, pode-se ver a mensagem por detrás da fotografia, como se assim pudesse o libertador dizer:

"Quem tem pátria, que a defenda.  Quem não tem, que a conquiste."

assim passam os dias na latino-américa: num sonho (e luta) para uma nova libertação.

 

domingo, 21 de abril de 2019

domingo de páscoa

três textos sobre a morte
um para cada dia da espera

1

parece que os cientistas descobriram o verdadeiro motivo do nosso primeiro choro. O ar, ao entrar em nossos pulmões pela primeira vez, causa-nos uma dor insuportável. Engraçado é perceber que quando nascemos, choramos enquanto todos fazem festa. Então, por que não acreditar que quando morrermos, poderemos sorrir enquanto todos os outros choram? Seria uma ironia da morte. Ou, talvez, esse seja o objetivo da vida. Tá aí; esse é um mistério que os cientistas ainda não conseguiram desvendar, apesar de ser a nossa única certeza: o fim em si mesmo.


2

tem dias que é preciso viver como se estivesse morto. Não levantar da cama e fazer da sua preguiça o seu velório. Não se comunicar, tampouco dar notícias. Fazer assim, do seu silêncio o seu luto. Tem dias que precisamos morrer para ressuscitar na mesma vida. Carregamos a morte dentro de nós. Com ela vamos ao trabalho. Compramos pão pela manhã. Brincamos com os nossos filhos. A morte sempre a espreita, na espera do seu momento. Por isso, os especialistas recomendam: morra de vez em quando. Faça desse animal selvagem um bicho doméstico. Torne-o dócil, inofensivo. Como aqueles cães que brincam para fora de casa - com os portões abertos - e voltam, pois conhecem onde há comida e abrigo. Esse é um paradoxo difícil de explicar, o da dialética entre a vida e a morte. Conseguir compreender essa síntese é o verdadeiro mistério: de que ao passo que vivemos, morremos. De modo que não há vida sem morte e só há morte se há vida.

3

Os girassóis escurecem ao morrer. Por um momento, as cores fortes do verde e amarelo cedem espaço ao preto do luto. Não bastam apenas três dias, mas depois de um tempo, quando parece que não há mais solução, eis que surgem novas cores vibrantes entre o cinza daquilo que um dia foi uma flor. Lembra um pouco as estrelas. Dizem que muitas estrelas que observamos no céu já não existem mais. O que enxergamos é apenas a sua luz daquilo que já foi um dia. Ou seja, os girassóis nos enganam por esconder na morte a vida, ao passo que as estrelas - ainda mais dissimuladas - trazem em seu brilho uma vida que não existe mais. Não sabemos se as estrelas carregam consigo - como os girassóis - as sementes da próxima vida. O que sabe-se é que do colapso gerado pelo seu fim, os fragmentos que restam, podem se unir novamente e formar outro ser cósmico. Não será a mesma luz. Provavelmente é algo o qual não sabemos o seu nome.