quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O povo brasileiro



"O povo nação não surge no Brasil da evolução de formas anteriores de sociabilidade, em que grupos humanos se estruturam em classes opostas, mas se conjugam para atender as suas necessidades de sobrevivência e progresso. Surge, isto sim, da concentação de uma força de trabalho escrava, recrutada para servir a propósitos mercantis alheios a ela, através de processos tão violentos de ordenação e repressão que constituiram, de fato, um continuado genocídio e um etnocídico implacável.


Nessas condições, exarceba-se o distanciamento social entre as classes dominantes e as subordinadas, e entre as oprimidas, agravando as oposições para acumular, debaixo da uniformidade étnico-cultural e da unidade nacional, tensões dissociativas de caráter traumático. Em consequencia, as elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois luso-brasileiras, e afinal, brasileiras, viveram sempre e ainda vivem sob o pavor pânico do alçamento das classes oprimidas.



O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, 'democracia racial', raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpo-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fosses castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis.

O que tem de comum e mais relevante é a insistência dos oprimidos em abrir e reabrir as lutas para fugir do destino que lhes é prescrito; e, de outro lado, a unanimidade da classe dominante que compõe e controla um parlamento servil, cuja função é manter a institucionalidade em que se baseia o latifúndio. Tudo isso é garantido pela pronta ação repressora de um corpo nacional das forças armadas que se prestava, ontem, ao papel perseguidor de escravos, como capitães do mato, e se presta, hoje, à função de pau-mandado de uma minoria infecunda contra todos os brasileiros."
RIBEIRO, Darcy - O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Fim de fevereiro

É final de fevereiro
acabaram-se as festas
acabou-se o dinheiro,
mas as flores ainda resistem.

Saber que resistem as flores,
aumenta a força dos jardins
que suporta
junto com as flores
os mais longos ventos
frios e fortes.


Saber que resistem os jardins.
Anima a primavera.
Que também resiste,
e persiste
contra o sol frio e seco.

Saber que ainda há,
na primavera,
jardins,
com flores,
faz resistir aquele
que só colheu espinhos
das flores,
dos jardins,
na primavera.

É final de fevereiro.
As flores ainda resistem.
Por que resistem as flores?
Por que não entregam suas pétalas ao Outono?
Por que as folhas não forram o chão?
Por que não cicatriza as feridas dos espinhos?

Definitivamente...
o outono só chegará em março.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

' Não se muda a história com lágrimas'







" Ando pelas ruas e vejo o povo magro, apático, abatido. Esse povo não pode acreditar em nenhum partido. Este povo alquebrado cujo sangue sem vigor. Este povo precisa da morte mais do que possa supor. O sangue que estimula meu irmão a dor... o sentimento do nada que gera o amor. A morte como fé não como temor."

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Logica de meus sentimentos

O que pensa a rosa,
uma única rosa,
quando tem muitas companhias
na primavera?

Por que o sol,
no inverno,
se esconde?

De cansaço?
Preguiça?
Vergonha?

Por que meu coração
não segue a lógica,
a razão,
dos meus sentimentos?

Por que não sigo
a correnteza
do rio?

Por que as coisas
são teimosas?

Por que tudo
insiste
insiste
em existir?

Por que não passa logo
o que deveria ter passado,
o que deveria nem ter existido,
o que deveria ter ido embora,
sem mesmo ter chegado.

Sem saudações,
sem despedidas.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

"À moi, ma chère amie!"


Em nome da lei,

sempre em nome da

lei.



Mata-se probres

Protege-se ricos.



Prende-se negros,

Liberta-se brancos,



Perde-se dinheiro.

Lucra-se dinheiro.



Aluga-se

Vende-se



Compro:

Ouro, joias, diamantes.



Tudo dentro da lei.

Em nome

da lei.



Oculta-se o corpo.

Mata-se refens.



Espanca o ladrão.

Atiram no cidadão.



Invadem sua casa.

Destroem suas mobilias.



Revistam seus pertences.

Mandam calar.

Mandam bater.



Pela lei,

sempre

em nome

da lei.



É proibido fumar.

É proibido andar

sem camisa



É proibido falar.

É proibido usar:

celular, maconha, cigarro.

Roupas vulgares.



É proibido vadiar.

Ficar parado.

Sentar.



Habeas

Corpus.

Data

Nada.



Da lei.

Sempre em nome

da lei.



O primeiro artigo,

"Não há crime sem lei anterior que o defina",

Não importa.



Para o policial,

guarda,

xerife,

delegado.

jornais.



Eles sempre agem.

Sempre

agem.

Sempre.

Em nome.

Sempre em nome.

Em nome.

da

...
Imagem: Jacques-Louis David, A morte de Marat, 1793.

Duvidas

Ontem,
eu vi um homem
morto.
Na calçada.


Era um mendigo.
Quando estava
vivo,
ninguém olhava.

Agora morto
todos param
Olham,
choram,
lamentam.

Menos uma vida,
que vida?

Hoje escutei um homem ser morto
a tiros.
tiros
tiros
tiros
tiros

Muitos pararam
para vê-lo.
Policia,
Ambulância,
Médicos.


Não serviram.
Ele morreu.
Faleceu.


Menos um homem,
que homem?


Amanha,
morrerá outro alguém.
Não evitaremos.
Falecerão
crianças,
mulheres,
homens.


De fome,

doença,

armas.


Não evitaremos.

Por que não impedimos?
Por que ficamos inertes?
Por que não fazemos nada?
Por que?
Por que?

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Sentidos






No tato
o arrepio

Na respiração
o suspiro

No olhar,
profundo
e denso,
a lágrima

Na audição,
doces silabas,
sutil voz.

No coração,
o sentimento
dolorido
e indeciso.

Intenso
e comprometido

Que vai passar.
talvez, vá passar.
Imagem: Johannes Vermeer, A Menina do Turbante (ou A Menina do Brinco de Pérola),