domingo, 21 de abril de 2019

domingo de páscoa

três textos sobre a morte
um para cada dia da espera

1

parece que os cientistas descobriram o verdadeiro motivo do nosso primeiro choro. O ar, ao entrar em nossos pulmões pela primeira vez, causa-nos uma dor insuportável. Engraçado é perceber que quando nascemos, choramos enquanto todos fazem festa. Então, por que não acreditar que quando morrermos, poderemos sorrir enquanto todos os outros choram? Seria uma ironia da morte. Ou, talvez, esse seja o objetivo da vida. Tá aí; esse é um mistério que os cientistas ainda não conseguiram desvendar, apesar de ser a nossa única certeza: o fim em si mesmo.


2

tem dias que é preciso viver como se estivesse morto. Não levantar da cama e fazer da sua preguiça o seu velório. Não se comunicar, tampouco dar notícias. Fazer assim, do seu silêncio o seu luto. Tem dias que precisamos morrer para ressuscitar na mesma vida. Carregamos a morte dentro de nós. Com ela vamos ao trabalho. Compramos pão pela manhã. Brincamos com os nossos filhos. A morte sempre a espreita, na espera do seu momento. Por isso, os especialistas recomendam: morra de vez em quando. Faça desse animal selvagem um bicho doméstico. Torne-o dócil, inofensivo. Como aqueles cães que brincam para fora de casa - com os portões abertos - e voltam, pois conhecem onde há comida e abrigo. Esse é um paradoxo difícil de explicar, o da dialética entre a vida e a morte. Conseguir compreender essa síntese é o verdadeiro mistério: de que ao passo que vivemos, morremos. De modo que não há vida sem morte e só há morte se há vida.

3

Os girassóis escurecem ao morrer. Por um momento, as cores fortes do verde e amarelo cedem espaço ao preto do luto. Não bastam apenas três dias, mas depois de um tempo, quando parece que não há mais solução, eis que surgem novas cores vibrantes entre o cinza daquilo que um dia foi uma flor. Lembra um pouco as estrelas. Dizem que muitas estrelas que observamos no céu já não existem mais. O que enxergamos é apenas a sua luz daquilo que já foi um dia. Ou seja, os girassóis nos enganam por esconder na morte a vida, ao passo que as estrelas - ainda mais dissimuladas - trazem em seu brilho uma vida que não existe mais. Não sabemos se as estrelas carregam consigo - como os girassóis - as sementes da próxima vida. O que sabe-se é que do colapso gerado pelo seu fim, os fragmentos que restam, podem se unir novamente e formar outro ser cósmico. Não será a mesma luz. Provavelmente é algo o qual não sabemos o seu nome. 

sábado, 20 de abril de 2019

a defesa de judas iscariotes











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com a intimidade de quem pode lhe beijar a face, 
o traidor entregou o messias.

estamos esperando ele voltar
sem perceber que o matamos todos os dias
essa é a melhor defesa
para judas iscariotes

sexta-feira, 19 de abril de 2019

sexta-feira da paixão

é sexta-feira da paixão, mas não podemos fazer amor: é pecado, diria a minha vó. Isso porque alguns anos atrás pregaram um homem num tronco e o deixaram lá até a morte. Fizeram isso de novo uns dias atrás no Flamengo. Ao invés do tronco, um poste. Ao invés de prego, uma trava de bicicleta. Ambos ficaram nu, apenas um pano cobria a parte íntima. Acho que não houve tanta repercussão, como o outro caso, por conta da cor dos olhos. Olhos azuis chamam muita atenção no Brasil. Os bombeiros precisaram usar um maçarico para abrir a trava que prendia o pescoço do rapaz. Não havia nenhuma coroa, tampouco lhe ofereceram vinagre. A semelhança que ainda resta daquele tempo com hoje são os gritos e as agressões que ambos receberam de quem, distraído, passava pelo caminho: olhavam e cuspiam. Outra parecença é que aquela trava de bicicleta. Lembra muito o ferro ao pescoço aplicado aos escravos fujões. A escravidão já acabou - dizem! - mas curiosamente os castigos continuam para a mesma cor de pele. O menino do Flamengo sobreviveu, mas não sabemos até quando. Talvez tenha o mesmo destino dos meninos da Candelária, assassinados na frente de uma Igreja, onde aqueles que sobreviveram não tardaram muito para encontrar seu destino: da "morte matada antes dos 30". Já se passaram alguns anos e ainda ninguém ressuscitou. Pelo contrário, continuam morrendo. Vai ver é porque nenhum deles tinham olhos azuis. Olhos azuis chamam atenção demais no Brasil. 

quinta-feira, 18 de abril de 2019

a última ceia

'compreendeis o que vos fiz?'  (joão 13:12)
'por que o senhor atirou em mim?' (d.r, 17)

são paulo, jaçanã: os policiais foram ao local para atender uma denúncia de "distúrbio de paz"; não tiveram sucesso: uma bala encontrou um tórax de um adolescente - dezessete anos -  após a morte do menino, a rodovia fernão dias foi interdidata, seis ônibus incendiados, três caminhões queimados e agências bancárias depredadas: 'por que o senhor atirou em mim?' - ainda não compreendemos aquele gesto de lavar os pés: 'por que o senhor atirou em mim?'  ainda não temos a resposta para uma pergunta tão simples.

*

somente os suicidas sabem o momento de sua última ceia; mas não foi isso que pensou aquele rapaz, ao parar num bar antes de chegar em casa depois do trabalho; sentou-se à mesa com os amigos que ali já estavam; a seleção jogava com maestria contra a bolívia: 6x0; o dia quente repousava nas suas cabeças e do chão subia aquele vapor abafado típico do subúrbio; mesmo assim não imaginariam que dali explodiria uma granada, que mataria sete pessoas; as demais foram fuziladas... numa tempestade  de chumbo em meio a um dia sem nuvens: o sangue escorrendo pela calçada formava o arco-íris tão comum nesses momentos; quando a tempestade dissipou, contaram os corpos: vinte e três; perfilaram-os em duas linhas: ninguém teve seus pés lavados. 

*

o menino - por conta da pressa - lavou apenas o pé para calçar o sapato; aqueles garotos estavam animados com o primeiro salário do amigo: jovem aprendiz no atacadão da avenida brasil; saíram todos para jantar; entraram os cinco, bem apertados, no pálio do ano de dois mil e um; a caçula de cinco anos quis ir, mas não havia mais lugar; o irmão então prometeu trazer um lanche, mas ele nunca mais voltou: mataram-o antes de fazer a sua última ceia... estavam em costa barros, o motorista dirigia o pálio a 60 km/h; o projétil ao sair do cano do fuzil viajou a 1.200km/h - demorando alguns segundos - até encontrar os corpos; já estavam mortos quando foi possível ouvir o barulho do impacto do aço em suas carnes; foram um pouco mais de oitenta tiros - nenhuma bala se perdeu.


Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens. (Mateus 5:13)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

cinelândia

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os trabalhadores da avenida central jamais imaginariam que, um século depois, você cruzaria aquela praça cercada por prédios ecléticos: de um lado a dança, com o theatro; do outro a película, com o odeon; arrematado pelos quadros e livros, do museu e biblioteca. no seu ouvido: janis joplin - sitiada pela arte (você, a única artista) dançando para uma plateia desavisada do espetáculo. Chamam essa praça de outro nome, porque a elegeram pelo o que ela é. Antes de seus passos já passaram tantos outros, por tantos motivos, mas quase todos em busca do desconhecido. Ali também havia um palácio, construído no começo da república, uma ironia que sacramentou seu fim. Era bonito. Inegavelmente bonito. Talvez fosse possível vê-lo da sua janela enquanto toma um chá. Todavia, demoliram-o. Só para mostrar que tudo é perecível. Demoliram-o. Quem sabe, por esses dias, uma vó apontaria para o seu neto uma praça vazia e diria: 'ali existia um palácio'. Hoje há uma praça vazia. Vazia por ser inútil, inútil por ser vazia. Pouco importa, pois você caminha na direção contrária, com seus fones de ouvido (Take another little piece of my heart now, baby!) Se ele estivesse lá, você com o volume alto, nem perceberia, (Break another little bit of my heart now, darling) pois só sentimos falta daquilo que carecemos. (You know you got it if it makes you feel good/ oh, yes indeed)... e afinal, quem precisa de um palácio?